Associação Brasileira de Pesquisadores de
Comunicação Organizacional e de Relações Públicas

O que Paulo Freire me causou, por Cristina Nunes de Sant’Anna

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O evento de comemoração ao centenário de nascimento de Paulo Freire, promovido pela Associação Brasileira de Pesquisadores de Comunicação Organizacional e de Relações Públicas (Abrapcorp), em parceria com o Laboratório de Comunicação, Cidade e Consumo (Lacon) da UERJ, celebrou a vida e grandiosidade do patrono da educação brasileira, com depoimentos e lembranças que avivaram a memória de todos. O vídeo está disponível no canal da Abrapcorp no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=YsAQu2A5Ix4&lc=Ugy81slOmWbv5XzyNNZ4AaABAg

Diante de um legado que é impossível ser devidamente mensurado, e de ter a sua magnitude completamente compreendida, homenageamos a vida e o trabalho de Paulo Freire com saudosismo e emoção. A Profa. Dra. Cristina Nunes de Sant’Anna nos trouxe um nobre relato sobre o impacto que Freire e seu trabalho deixaram em sua vida, no seu modo de lecionar. 

Com o texto de Cristina, relembramos mais uma vez a importância da obra de Paulo Freire, que continua a inspirar milhares de alfabetizadores por todo o Brasil. 

Confira o texto da autora a seguir:

O que Paulo Freire me causou

Preciso deixar registrado meu profundo agradecimento ao Laboratório de Comunicação, Cidade e Consumo (Lacon)  da UERJ, do qual sou pesquisadora associada, e à Associação Brasileira de Pesquisadores de Comunicação Organizacional e de Relações Públicas (Abrapcorp), que me presentearam com um passaporte mágico para me levar ao mestre Paulo Freire (1921 – 1997). A viagem, de fato, muito me emocionou. Pela iniciativa de ambas as instituições, foi apresentado, no dia 2 de setembro, um evento on line sobre o patrono da educação brasileira, em comemoração a seu centenário de nascimento. 

Foi também graças ao Lacon e à Abrapcorp, que eu me vi diante das madeleines de Marcel Proust na xícara de chá, fazendo minha mise em âbime, para me enveredar por artefatos de minha memória. 

Ora, e não é a memória que forja em nós exemplos a seguir, histórias a perpetuar, modelos a cultuar? Não é a memória o lugar da retenção do conhecimento, da aprendizagem? Não é a memória o lugar onde se inicia a elaboração do conhecimento científico? A memória liga o presente ao passado, a fim de que partamos para o futuro. São antepassados e tradições que nos tornam o que somos. O papel da memória, contudo, é mais do que reviver o passado. É nos tornar dignos de nós mesmos, por intermédio deste passado, e avaliando o que merece ser revisto ou não. Mantido ou não. O futuro não existe. É o presente misturado ao passado que nos torna capazes de construí-lo.  

O lugar mnemônico seria, então, o lugar da nossa imortalidade, já que vive  em nossos filhos, netos, nas histórias que compartilhamos, nos hábitos que tivemos e na memória imortal que deixamos. É esta memória que compartilhamos que se imortaliza na língua que falamos, nas culturas que dividimos, nos nossos sentimentos coletivos. É, então, esta nossa memória imortal que nos pode tornar melhores  ao nos conceder o poder de não repetir o que não deve ser repetido e a engendrar outras memórias para o futuro.  

Pois a chama de minha imortalidade pela memória veio à tona no dia 2 de setembro de 2021, em meio ao seminário de Paulo Freire. Convenhamos que o presente que se apresenta a nós é o pior possível. Mas o presente, contudo, mais do que nunca, será capaz de nos levar ao passado com as práticas de Paulo Freire: ícone de resistência, esperança, renovação, escapatória e saída. Quanto mais os seres do atraso querem apagar sua maestria, mais Freire ganha tutano e aumenta sua grandeza. Isto só prova sua eterna pujança.  

Há muitos e muitos anos, trabalhei como professora primária num bairro da zona portuária do Rio de Janeiro, chamado Caju. Mais conhecido por ser lugar só de gente morta, pelos cemitérios dali. 

A escola pública em que lecionei ficava dentro de uma comunidade de pescadores muito pobre. Eu tinha 19 anos e Paulo Freire tinha sido proibidão pela ditadura. Um professor de Filosofia havia nos falado dele na Escola Normal que eu havia cursado: de sua mania de alfabetizar meninos e meninas grandes de pé no chão, no interior do Nordeste, com seu método de palavras e ideias símbolos, chamado “De pé no chão também se aprende a ler”. Aprendia-se com alegria e trocas de saberes. Este professor de Filosofia nos falou também de seu exílio forçado, justamente por seu método ter conseguido alfabetizar tão bem essas gentes todas, privadas que eram do direito à leitura por esta mesma ditadura e pelas elites de sempre. Sempre elas. 

Foi quando Educação como prática de liberdade e Pedagogia do oprimido me caíram às mãos, presenteados por meu pai. Parei tudo para lê-los.   

Corta pro Caju. 

Era 1984 e eu chegara para meu primeiro dia como professora. “Ganhei” a turma que ninguém queria. A turma que estava há muito sem professor, sem aula, sem lição, sem alfabetização. Eles queriam saber tudo sobre mim. Tinham pressa. E muita, muita energia. Para me testar, pegaram todos os alfinetes do mural e se espetavam uns aos outros. Eu, sentindo-me completamente perdida, ia tentando recolher os alfinetes deles e os ia espetando em minha blusa. A sala de aula era um circo. Então, como que num pensamento mágico, rolou uma sinapse poderosa:  

“Ora, se eu acredito mesmo em educação como prática de liberdade, essa garotada tem mais é que pegar alfinete do mural pra se expressar e eles e eu precisamos encontrar uma educação política, de decisão, que os liberte do analfabetismo”, pensei, com a blusa sem quase mais lugar para espetar alfinetes.  

Pois é.  Leitura e literatura têm dessas bruxarias sinápticas. Podem acreditar. No mais, não por acaso, Paulo Freire é também autor de A importância do ato de ler

Comecei a pensar em “palavras mundo” deles. E pergunta daqui e pergunta dali e iam rolando desenhos, rodas de conversa, de histórias, já que não sabiam ler. Eu pensava em Paulo Freire, neles e em mim. Seguia tateando. Sabia que o método de Freire havia sido criado para adultos. Eu tinha crianças e adolescentes. Mas liberdade é pra todo mundo. E educação também.

Se ali era uma colônia de pescadores, comecei por perguntar qual era o melhor peixe que era vendido pelos pais e que eles raramente podiam experimentar. Por quê? E de que parte deste peixe gostariam mais de comer, se pudessem? E por que não podiam? Então nunca iriam poder comer este tipo de peixe? Mas o mar não tem peixe pra todo mundo pescar se quiser? E fomos eu com eles e eles comigo (com Paulo Freire junto de nós), de peixe para mar, para desenho de mar com e sem peixe. Para história de sereia e para a primeira palavra lida. Palavra deles. Só deles. Que a leram. Sozinhos. Sem mim. Livres e, a partir de então, cheios de palavras que viriam a ler. Primeiro foi um, depois outro. Tais quais peixinhos novos nadando rápidos no cardume.  

Fui no banheiro chorar. Mas não podia chorar muito porque eles iriam me perguntar o porquê. Ainda mais que a gente tinha combinado de sempre querer saber sobre porquês. E que o bacana era a gente não ter resposta para tudo quanto é porque pra ter sempre porque pra perguntar e, assim, poder ir descobrindo e deixando marcas na vida. Igual ao mar que vem e vai na areia. Sempre deixando um pouco de sua espuma ali, marcada, pra gente poder ver e ler.  

Faz muito tempo  que saí daquela escola de filhos de pescadores. Nunca mais os vi. Mas eles aprenderam a ler palavras da vida. 

Obrigada Lacon e Abrapcorp. 

Obrigada Paulo Freire, por esta jornada pela imortalidade da memória, que nos fortalece sempre e nos revigora em nossos traços e leituras pelo mundo. 

Cristina Nunes de Sant’Anna